terça-feira, 24 de novembro de 2009

CONFIGURAÇÃO GERAL DA CULTURA ASHENINKA


INTRODUÇÃO



O presente trabalho tem por finalidade estudar os diferentes aspectos que constituem a cultura Aseninka, procurando reunir e discutir os dados pertinentes a cada componente sócio-cultural. Neste sentido procurou-se levantar e analisar dados referentes à localização, demografia, classificação lingüística,
denominação, organização econômica, organização social, sistema de parentesco, mitologia e xamanismo. O conjunto destes itens constituirão a especificidade cultural Asheninka.

1. Localização

Tradicionalmente os Asheninka vem habitando territórios compreendidos pelos paralelos 9 a 13 de latitude sul e de 72 a 75 de longitude (west of Greenwich). Estes territórios são constituídos pela selva central peruana e pelas colinas e montanhas próximas a cordilheiras andina. A área partilhada pelos Asheninka varia de 110 a 150 mil km de extensão, incluindo as ocupações em território brasileiro. Na selva central peruana habitam as margens e afluentes dos rios Apurimac, Tambo, Ene, Chanchamayo, Pichis, Pachitea, Baixo Urubamba, Alto Ucayali e afluentes. Habitam também as zonas do Gran Pajonal e de Sátipo. Seus territórios na República Peruana estão situados nos Departamentos de Loreto, Cuzco e Madre de Dios. Em território brasileiro localizam na Bacia do Juruá, junto aos afluentes Moa e Breu, e no alto Rio Envira e seu tributário Riosinho, nos municípios de Cruzeiro do Sul e Feijó, Estado do Acre. O território Asheninka limita-se ao sul e ocidente pela Cordilheira dos Andes com elevações superiores a 1500 metros de altitude; ao oriente e ao norte com a selva da Amazônia meridional e ocidental, habitada por grupos das línguas pano e aruak, como os Machiguenaga, Piro, Cunibo, Cushibo, Kulina, Kaxeinawá e outros. Os Asheninka brasileiros limitam seus territórios com os Kaxinawá, Kulina e tribos arredias que habitam os altos rios Jordão e Envira.

2. Demografia

Não há segurança em relação aos dados sobre a população Asheninka, devido a imprecisão dos métodos de levantamento utilizados, a inacessibilidade ao seu território, a amplitude de objeto dos trabalhos realizados e a confusão feita pelos estudiosos entre os Asheninka e os povos limítrofes e vizinhos. A inexatidão e insegurança dos dados demográficos aumenta em relação as fontes históricas.

Os dados disponíveis são contraditórios, parciais e estimativos. OSMBELA estimulou existirem em 1986 aproximadamente 20.000 indivíduos. A sua estimativa, entretanto, certamente considerou membros de outros grupos (1). CIPRIANI dava aos Asheninka apenas 2.000 pessoas ao máximo. Sua estimativa dava conta apenas dos Asheninka do Chanchamayo e do Gran Pajonal (2). EBERHARDT, VON HASSEL E NORDENSKJOLD elaboram estimativas que variavam de 10.000 a 15.000 indivíduos (3). GRUBB E FAST acreditavam em cerca de 30.000 à 40.000 pessoas (4). Um censo de 1940 considera um total de 350.000 índios na selva peruana, mas não especifica a população de cada grupo lingüístico. Segundo o antropólogo ROWE os censo são cálculos aproximativos e de pouco valor (5).

De acordo com VARESE é difícil aderir a quaisquer desses cálculos, mas, coloca como número que pode ser o mais aproximado da realidade a ordem de 20.000, considerando os machiguenga excluídos por constituir grupo lingüístico distinto (6). Em território brasileiro existem cerca de 370 indivíduos distribuídos em aproximadamente 13 aldeias, constituindo as do Rio Amônea a maior concentração populacional.

3. Classificação lingüística

Os Asheninka sempre foram considerados como pertencentes à família Aruak.

Foram considerados por Brinton, em 1891, como integrantes do “stock” lingüístico “Arahuaco”, que colocava com hipótese de que a zona do Gran Payonal e os rios adjacentes podiam constituir o centro de dispersão do “stock” inteiro (7). RIVET E TASTEVIN, consideraram os Asheninka como um dos grupos “Aruak pré-andinos”. Classificaram os grupos que habitam os pés dos Andes como sendo “Aruak pré-andinos”: 1. Os Pero ou Chontakiro do Ucayali, os Kuniba do Juruá e os Kanamaria . 2. Os Kampa ou Anti, ou Cachiganga ou Katongo. 3. Os Ipuriná e os Marawan. 4. Os Mareteneri, os Inapari e o dialeto Pajaguara (8). LOUKOTKA também utilizou a denominação pré-andina a sua classificação das línguas da América do Sul. Segundo o lingüística o Campa é um dos 14 idiomas classificados como “Aruak pré-andinos”. Confunde os Machiguenga com Kampa (9). Na classificação de MASON, 1950, há uma separação clara entre os Campa, os Machiguenga e os Piro (10). De acordo com STEWARD E FARON, baseados na classificação esquemática de J. GREENBERG, incluem os campa dentro da subfamília aruak e, esta, dentro da família andino-equatorial (11). SHELL, em 1958, congrega na família arawak pré-andina os Piro, os Machiguenga, os Campa, os Masco (Mashco), os Amuesha e os Nomatsigengua (também tidos como um subgrupo Campa) (12).

É consenso entre os Lingüistas de que os Asheninka pertencem à família Lingüística arawak, do Lingüístico Aruak.

A língua Asheninka conforme as regiões de origem dos seus falantes, possue variações. É possível detectar-se diferenças léxicas e fonológicas. De uma foram geral podemos afirmar que a língua Asheninka constitui-se dos seguintes fonemas: a, e, i, o, h, k, m, n, p, q, r, s, t, v, y, s (=sh), c (=ts), c (=tsh). Como todas as línguas ameríndias é polissintética. Alguns aspectos gramaticais observados dão ao Asheninka apenas dois tempos verbais: o da ação realizada e da ação não realizada; dois gêneros; masculino-animado e feminino-inanimado; a pluralidade não é indicada; os numerais são pouco desenvolvidos e são representadas por alguns termos bem definidos. As operações matemáticas não fazem parte do universo lingüístico tradicional dos Asheninka. Seu uso é recente e decorre das relações com os Brancos, cuja complexidade exige conhecimentos novos e instrução em língua espanhola e portuguesa. A escrita também não faz parte do contexto Lingüístico tradicional dos Asheninka.

4. Denominação

O termo Asheninka constitui-se autodenominação e significa literalmente “nossos camaradas”, e, ainda, povo, gente, compatriota, os atziri (seres humanos) (13). Este termo é utilizado pela maioria dos indivíduos para identificar a sociedade a que pertencem, uma entidade detentora de uma tradição comum, de um território, de uma cultura e organização própria, de língua particular, etc...
Historicamente os Asheninka receberam de parte da sociedade colonial espanhola do Vice-Reinado Espanhol do Peru e da sociedade nacional da República do Peru uma série de denominações. Nos séculos XVI e XVII eram conhecidos genericamente pelos designativos “Chuncho” e “Anti”, termos que serviram equivocadamente para denominar tanto os grupos tribais da selva como os da montaña. Outro termo utilizados pelos conquistadores e andinos para designar os grupos da selva foi “Pilcozones”. O termo “Campa” não constitui palavra da língua Asheninka e aparece em documentos missionários da segunda metade do século XVII. Sua origem é incerta (14). Parece possuir conotação depreciativa. É utilizado pelos Brancos, mas não pelos Asheninka para designar a si mesmos; apenas como uma palavra estrangeira reconhecida.
Atualmente permanece o termo Campa como denominação mais usada para identificar os Asheninka (15). Entretanto, para o grupo, o único termo utilizado continua a ser o da autodenominação Asheninka.
A confusão e ambivalência das denominações atribuídas aos Asheninka denotam o descaso e o etnocentrismo a que foram historicamente relegados . A manutenção da autodenominação Asheninka ao longo de mais de quatro séculos de conflito com as sociedades espanhola, peruana e brasileira refletem o grau de resistência oferecido por esta sociedade contra os mais diversos processos de denominação, inclusive o Lingüístico.

5. Organização Econômica

Como a maioria dos grupos da selva amazônica e da América do Sul praticam a agricultura de corte e queimada (coivara). Esta prática também é conhecida por cultura de roça. Estudos de etnologia, geografia humana e econômica agrária demostram que existe uma profunda vinculação entre as sociedades indígenas e a agricultura de roçado e coivara.
Este tipo de agricultura praticado tradicionalmente na Amazônia também é conhecida como agricultura itinerante (16). Esta modalidade implica em cultivar-se de duas a cinco vezes uma mesma área e, em seguida, abandonadá-la à vegetação rasteira de rápido crescimento. Enquanto isto são desenvolvidos novos roçados e novos cultivos em terras virgens, relativamente próximos. Esta prática permite a regeneração natural da estrutura de solos, sobretudo da camada de humus das áreas esgotadas. Quando a nova estiver exaurida, ou seja, após aproximadamente cinco anos de cultivos, os agricultores tornam à área antiga para recomeçar o ciclo. A mudança de roçado e habitações nem sempre ocorre concomitantimente. Às vezes o novo roçado dista apenas 300 a 500 metros do antigo.
Nem sempre o esgotamento do solo é razão de mobilidade habitacional. Existem outras razões de ordem social e religiosa responsáveis pelos deslocamentos. A interação entre uma e outra causa ainda foi suficientemente investigada (17).
O principal item da agricultura Asheninka e da sua dieta alimentar e o kawiri (macaxeira, yuca, aipim, mandioca). Os Asheninka distinguem e cultivam até trinta variedades de mandioca, sendo a Manihot sclenta a mais aparecida. Compõe a base alimentar quotidiana. Consome-se cozida, assada ou como bebida fermentada (piarentsi ou massato).
Outras plantas completam as necessidades de subsistência das aldeias Asheninka. Entre elas o feijão peruano ou feijão de praia (matshaki. Os Asheninka conhecem sete variedades), o mamão (mapotsha), bananas (parenti),
Milho (tshinki),amendoin (inki), batata doce (koriti), cana de açúcar (tshanko), abacaxi (tivana), melancia (santira) limão (irimaki), laranja (naranka),ingá (intsipa),etc.
Além das plantas de uso alimentar os Asheninka cultivam plantas para o vestuário, o algodão (ampéhi), e o genipapo (ana); plantas para tinturaria, oyepári, iyórita, oyétshari; plantas de uso ritual: coca (koka), tabaco (potsharo), cipó Banistereopsis caapi (kamárampi, hananerótsa), chacrona (hayapa); ervas madicinais , o Cyperus piripiri (ivenki), o pinistsi, etc; ervas venenosas utilizadas nas pescarias e caçadas, kómo, pitishi e o vakashi (18).
As atividades de caça e pesca complementam a subsistência, fornecendo as proteínas necessárias para completar a dieta alimentar do grupo (19). Entre os peixes mais apreciados estão o mandi, o jundiá, a traíra, o surubim, o tambaqui, etc. A proteína animal é obtida de répteis, mamíferos e aves silvestres, tais como o jacaré, o lagarto, a paca, a capivara, a anta, o queixada, o veado, o macaco, o jacamim, o nhambú, o jabuti, o tracajá, etc.
A coleta constitui tarefa de jovens, crianças e adultos tonto do sexo feminino, como do masculino. Os principais itens de coleta são pupunha, cacau silvestre, o mel, o óleo de capaíba e animais como o jaboti e o tracajá.
A divisão social do trabalho é manifestada sobretudo na distribuição sexual de atividades. Na família conjugal Asheninka compete aos homens caçar, pescar, coletar, colher, preparar, limpar e plantar os roçadores; construir as habitações; manufaturar os equipamentos de caça e pesca (arco, flechas, arpões); construir embarcações (ubás, remos, jangadas, etc); coordenar e chefiar os empreendimentos coletivos (pescarias, caçadas, rituais e negócio). Ás mulheres cabe executar diariamente as atividades de cozinha e preparo dos alimentos; a colheita de kaniri para a refeição diária; cuidar de todo o processo de tecelagem dos kusmas, bolsas e outras peças; colher o algodão, limpar, fiar, tecer e tingir; fabricar cerâmicas, esteiras, cestas e outros utensílios de uso doméstico; cuidar dos recém nascidos e das crianças.
Existem algumas atividades que requerem a participação de um grande número de pessoas. As pescarias, por exemplo, reúnem pessoas de diversas famílias e, às vezes, até de outras aldeias. Utilizam-se ervas, venenosas e anestesiantes que, após maceradas, formam uma espécie de pasta a ser dissolvida nos locais de água parada, geralmente igarapés ou lagos.
A propriedade e posse da terra está restrita ao roçado e à casa. Não existe a figura jurídica de propriedade na cultura Asheninka. Os equipamentos, o roçado, etc são de quem os utiliza, os confecciona e prepara. As áreas de caça e pesca pertencem a todos. Os artefatos produzidos pela família (arco, flechas, kusmas, esteiras, tambores, cachimbos, etc) são de uso individual e privativo e podem ser permutados livremente por gêneros alimentícios ou outros utensílios. Existe solidariedade entre as famílias que já estão estabelecidas e as recém chegadas.
As atividades comerciais são freqüentes podendo ser constatadas entre as diversas aldeias e entre os Asheninka e os regionais proprietários de estabelecimentos comerciais urbanos, regatões e fazendeiros. Entre os Asheninka da-se uma relação simples de troca, conforme a necessidade e o desejo dos possuidores dos produtos e utensílios a serem trocados. Com os regionais a atividade comercial é mais complexa. Geralmente vendem as colheitas de feijão, ou o produto de extração madeireira (mogno, cedro. No passado, seringa) segundo as cotações do núcleo urbano de referência comercial mais próximo (no Acre, Feijó e Cruzeiro do Sul; no Amazonas, Eirunepé). Resulta desta transação pagamento em moeda e em espécie. Com o dinheiro apurado na venda, são adquiridas bens industrializados disponíveis no mercado local (óleo comestível, óleo lubrificante, gasolina, querosene, sal, açúcar, café, lanternas, roupas, perfumes, rádios, toca discos, etc). A atividade de troca e comércio constitui uma constante na cultura tradicional Asheninka.

6. Organização Social e Sistema de Parentesco.

A família elementar ou conjugal é a base da sociedade e da economia Asheninka. Marido, mulher, filhos, filhas. Entretanto, esta base ou unidade social não permanece estática. Existe flexibilidade. A família conjugal Asheninka insere-se numa rede de relações que vai desde os vínculos de parentescos propriamente ditos até vínculos de natureza comercial que são estabelecidos entre as aldeias Asheninka, com outras sociedades indígenas (Kulina, Kaxinawá, Machiguega, Cunibo, etc). e com os segmentos regionais da população nacional peruana e brasileira (regatões, marreteiros, seringueiros, caucheiros, madeireiros e comerciantes).
O casamento constitui um fato cultural complexo. Representa a instituição social responsável pelo engendramento de novas famílias e pelo prolongamento das famílias já constituídas. O matrimônio estabelece também vínculos de parentesco diferentes das relações consagüíneas.
A sociedade Asheninka como todas as sociedades possui mecanismos para regular o casamento consangüíneo, de forma que a harmonia do grupo e a cooperação familiar não sejam perturbadas. O principal mecanismo regulador reconhecido universalmente pelas culturas é a proibição do incesto (20).

O casamento ideal ou preferencial entre os membros da sociedade Asheninka é o que tem como esposos primos cruzados, mas quando um certo primo cruzado não está disponível, qualquer pessoa do sexo oposto pode ser tomada como consorte, desde que não seja parente próximo.

O casamento é admitido sem cerimônia alguma após o interessado obter a aprovação dos pais da moça ou seus tutores, presumindo-se que ela não seja contrária à aliança.

O casamento implica uma obrigação por parte do casal em residir próximo aos pais da esposa. A norma da uxori-localidade é rigorosamente observada, apesar de possuir duração determinada. Neste período o genro prestará serviços, na agricultura ou em outras atividades aos pais da consorte. Alguns informantes de aldeias do Alto Rio Envira revelaram ser esta prática uma espécie de pagamento ao sogro pela cessão da filha (21).
Apesar da família conjugal Asheninka ser na sua maioria uma família monogâmica, há incidência de casos de poligamia associada aos homens de maior prestígio no grupo (22). O sororato é encontrado em algumas aldeias, porém sua ocorrência é mínima.
Não existe famílias extensas, linhagens, sibs ou metades, ou seja, o parentesco consangüíneo e grupos de residência estão praticamente ausentes. Apesar das famílias conjugais Asheninka possuírem uma tendência atomística, as relações de parentesco são reconhecidas por toda a tribo. A rede de interrelações sociais constitui uma rede primária de parentesco. Os indivíduos são mais identificados em termos das suas relações de afinidade ao falante, ou pessoa conhecida, do que pelo nome (apelidos geralmente dados na infância). Os Asheninka possuem um sistema de parentesco que pode ser considerado como pertencente ao tipo Iroquês. A reprodução, criação e educação das crianças segue algumas normas de natureza cultural. Ambos, pai e mãe, comem uma seleta variedades de alimentos durante a gravidez, para assegurar um parto fácil e um herdeiro normal (23). Em seguida ao nascimento, os pais permanecem vários dias em casa. Abstém-se de comer alguns tipos de alimentos que acreditam prejudicar a si e ao recém nascido. As observâncias vão sendo progressivamente levantadas e terminam quando a criança começa a andar (24).
Entre os Asheninka a puberdade de uma moça cumpre uma série de procedimentos culturais: é confinada por vários meses a um recinto na casa principal, onde é atendida pela mãe e recebe uma dieta alimentar restrita. Passa o tempo fiando algodão. Durante este período não pode conversar com qualquer homem, nem pode permitir que qualquer homem veja sua face. No final desta prova terá os cabelos cortados e será pintada com ána (Genipa oblongifolia). A seguir ela se manifesta e é honrada com alguma festa. A partir de então a jovem moça está pronta para o casamento (é matrimoniável). Aparentemente não existem ritos de puberdade para os jovens, apesar de haverem sido constatados alguns comportamentos diferenciais em jovens nesta idade (25).
A terminologia de parentesco Asheninka descreve com precisão os ascendentes e descendentes de Ego de duas a quatro gerações cada. Alguns termos são aqui consignados: chaine e nato (itzá),são aplicados aos avós de Ego; apa e ina constituem os pais; koki e airontsi designam tanto os tios maternos como os tios paternos da geração acima de Ego. Na mesma geração, os termos iyenti e tsiontsi indicam irmão e irmã respectivamente; nojina, esposa; naro, Ego; ani, cunhado; tsionti e nojinatsori, cunhados. A geração imediatamente abaixo de Ego tem noshinto, filha; notomi, filho; noti e motonissori, sobrinhos; anioki e noshintotsori, sobrinhas. A segunda geração abaixo de Ego é expressa por nosaro, neta; chaine, neto. A terceira geração, sameti e niompare, bisnetos; campiro, compatiro, niomparo, bisnetas. A quarta geração, niomparo, tataraneta; niompari, tataraneto.

7. Religião, Mitologia e Xamanismo.

A cultura Asheninka é fortemente marcada pela organização religiosa. Todas as instâncias, da economia ao social, evidenciam uma relação com o nível espiritual (26). Embora não seja possível precisar a intensidade da religiosidade no quotidiano, as condutas, explicações místicas e rituais são uma constante.
A mitologia Asheninka revela uma grande variedade de seres sagrados e forças existente no cosmos e na natureza, bem como os eventos que, sucessivamente, vão se integrando ao seu universo cultural; exemplo: a origem e presença dos Virakocha (os Brancos). Para os Asheninka o mundo forma um conjunto sagrado de forças e potências que são manifestadas através dos mitos, narrativas tradicionais presentes ao quotidiano.
A instituição básica do sistema religioso dos Asheninka é conhecida como fraternidade dos xamãs. Constituem uma categoria de médico-religiosos que agem, individualmente, para compelir pretensões mútuas. São denominados shiripiari, sendo o mais aperfeiçoado conhecido como antiáviari. São pessoas adultas do sexo masculino que conseguem o status de shiripiari, após um ano de árdua e rigorosa aprendizagem que compreende abstinência de todas as atividades sexuais, restrições alimentícias, uso contínuo de narcóticos (tabaco e ayuasca), etc.
Na qualidade de líder religioso o shiripiari dirige os rituais de ayuasca, organizados por eles com muita freqüência. A ayuasca ou kamarampi é preparada através da ebulição da mistura de um tipo de trepadeira (Banisteriopsis sp) (27) e de folhas da planta silvestre horóva. Ao cair da noite o shiripiari bebe uma certa quantidade do Kamarampi e a seguir passa para os demais que se reúnem na sua casa. Quando o efeito começa, o shiripiari entoa cânticos os quais serão acompanhados pelos presentes até cessar a influência do narcótico. Segundo testemunho de um shiripiari do Alto Rio Envira, ao cantar, ele dialoga e repete o que os espíritos bons estão cantando. Nestas cerimônias os espíritos bons dançam e cantam na miração (visão produzida pela ingestão do Kamarampi).
Como médico o shiripiari é frequentemente requisitado para examinar pessoas que se encontram acometidas de algum mal. Ao examinar o paciente com o intuito de diagnosticar a causa da doença, o ele procede soprando tabaco sobre a parte afetada do corpo e, em seguida, a succiona. Com base nesta técnica de sucção apresenta o seu diagnóstico. Ele pode atribuir a doença ao demônio, Kamari, a uma bruxa humana ou não humana, matsi, ou a uma alma perdida (28). O shiripiari enquanto médico examina, prescreve e diagnostica, mas deixa por conta dos familiares dos pacientes tomar medidas necessárias à cura.
As mulheres possuem amplo conhecimento de ervas. Algumas chegam a examinar pacientes e aplicar a técnica chamada tsionkanci que consiste na introdução de pedras incandescentes em um pote de água com folhas selecionadas para produzir vaporização. O paciente posta-se sobre o pote e o vapor sobe sob sua roupa. No final o pote é examinado pela mulher à procura de objetos que se despreendem do corpo do paciente para dentro do pote, similar aos extraídos por sucção pelo shiripiari.
Os shiripiari são respeitados e gozam de grande prestígio no grupo. Constituem o recurso extremo em épocas de doenças graves. São os únicos que podem comunicar-se como os espíritos; interpretar e narrar mitos; são autoridades em crenças cosmológicas; presidem rituais; indicam regras e observâncias, etc. Seus poderes advêm do contìnuo consumo de tabaco e Kamarampi, que lhes permite falar com espíritos, prever fatos,”viajar ao longe”, etc. Existem shiripiari que possuem contato como espíritos maus, os jaguari da noite. Seus espíritos transformam-se em jaguare que atacam as pessoas que dormem. As rivalidades entre shiripiari produzem acusações desta natureza. Contra um shiripiari não é utilizada a violência.

CONCLUSÃO

As considerações sobre os diversos aspecto que integram a totalidade sócio-cultural Asheninka permite inferir as seguintes conclusões:

ª O termo “Asheninka” significa “nossos camaradas”, “nosso povo”, “nossa gente” e constitue autodenominação pela qual os Asheninka se identificam e se reconhecem. Os designativos “Campa”, “Pilcozones” e “Chuncho”, constituem gentílicos pejorativos e estígmas atribuídos pelos segmentos regionais da sociedade nacional peruana e brasileira.
b. Os Asheninka ocupam uma área territorial não contínua de cerca de 150 mil km quadrados, constituída de regiões serranas e de planície amazônica, em território peruano e brasileiro. Suas aldeias localizam-se, no Brasil, junto ao curso Superior do Rio Juruá e seus afluentes Breu e Amônea, e do Alto Rio Envira e seu tributário Riosinho; no Peru às margens e afluentes dos Rios Apurimac, Ene, Tambo, Chanchanyo, Pichis, Pachitea, Baixo Urubamba, Alto Ucayali, e as zonas do Gran Pajonal e Satipo.
c. Apesar da falta e confusão de dados demográficos estima-se existir cerca de 30 mil indivíduos nação Asheninka.
d. Os Asheninka constituem uma sociedade cujo idioma, o Asheninka, pertence ao tronco lingüístico aruak e é falado através de diversas variações dialetais.
e. Como a maioria dos grupos que habitam a selva amazônica os Asheninka desenvolvem uma agricultura de subsistência baseada na técnica de corte e queimada (coivara), obedecendo o ciclo agrícola itinerante, cultivam produtos agrícolas (mandioca, feijão, arroz, banana, mamão, etc) e complementam sua dieta alimentar como produtos de caça, pesca e coleta. Para obetenção de bens de consumo junto aos regionais praticam o extrativismo madeireiro.
f. A organização social Asheninka tem por base a família elementar ou conjugal. O casamento representa a instituição social responsável pelo engendramento e prolongamento das relações familiares. Ao casar-se genro passa a fixar residência junto aos pais da esposa, os sogros. O casamento preferencial é entre primos cruzados. São constatados casos de poligamia, inclusive na forma sororal. Existem prática rituais de puberdade em relações às mulheres. O sistema de parentesco Asheninka é de

tipo Iroquês.

g. A cultura Asheninka é fortemente marcada pela dimensão religiosa. A mitologia é rica e vasta e diz respeito a todos aspectos de organização social, econômica e cultural, dos assuntos mais simples aos mais complexos. O Xamanismo constitui uma instituição importante na sociedade Asheninka,

Tendo o Xanã funções religiosas e médicas.

Estes caracteres formam um conjunto sócio-cultural e denotam uma totalidade cujas instituições encontram-se inter-ligadas e integradas. A formação sócio-econômica Asheninka constitui uma estrutura e um sistema dinâmico, no qual, os Asheninka, reconhecem-se como sociedade diferente e estão inseridos dentro de um contexto ecológico peculiar e de uma cultura específica, que se opõe, em maior ou menor grau, às demais sociedades tribais vizinhas, e às formações sócio-econômicas regionais peruanas e brasileiras. Nesta perspectiva torna-se possível compreender e definir sociedade e cultura Asheninka.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


(1) OSAMBELA, Claudio. El Oriente del Perú. Boletin de la Sociedad Geográfica de Lima. Lima, (I. VI. Nos. 4, 5, 6): 220, 1986.

(2) CIPRIANI, Cesar. Informe del ingeniero sobre la ruta Perené-Ucayali Lima, Imprenta del Estado, 1906, p. 57.

(3) HASSEL, J. M. Von. Las Tribus salvajes de la region amazônica del Perú. Boletin Sociedad Geográfica de Lima. Lima (Año XV, trim I, T. XVII): 31-32, 1905. EBERHARDT, Charles. Indians of Peru. Smithsonian miscelaneous collection (Vol. 52): 184. NORDENSKJOLD, O tto. Explorations chfz les Indies Campas dans le pérou. Meddelande fran Geografiska Formeningen i Goteborg (III): p. 6. 1924.

(4) GRUBB, Kenneth. The Iowland Indians of Amazonia. London, Word Dominion Press, 1927, p. 86. FAST, Pedro. Distribuicion geografica de 30 naciones aborígenes em la Amazonia Peruana. Lima, Ministério de Educacion Pública, 1961, p. 4.

(5) ROWE, John. The distribution of Indians and Indians languages in Peru. Geographical Review, New York (XXXXVII, No. 2):213, 1947.

(6) VARESE, Stefano. La Sal de los Cerros. Lima, Retablo de Papel, 1973, p. 44.

(7) BRINTON, Daniel 6. A raza Americana. Buenos Ayres, Ed. Nova, 1946, p. 224.

(8) RIVET, Paul y TASTEVIN, C. Les langues du juruá et de régions limitrophes. I. Le groupe arawak preandin. In: Antropological Papers, No. 8, V. 73, semdata, pp. 857-859.

(9) LOUKOTKA, Chestmir. Classification de las lenguas sudamericanas. Praha, Edic. Lingüística Sudamericana, No. 1, 1935. P. 21.

(10) MASON,Alden J. The Languages of Sowth American Indians. HSAI, v. 6, P. 213.

(11) STEWARD, Julian e FARON, Louis. Native People of Sonth America. New york, McGraw Hill Book Company, 1959, p. 22.

(12) SHELL, Olive A . Grupos Indiomáticos de la selva Peruana. Lima. Instituto de Filosofia de la Faculdad de Letras de la Universidad Mayor de San Marcos, 1958, pp. 4-7.

(13) Utilizam também o termo “noshaninka”, minha gente, minha família.

(14) Stefano Varese reforça a hipóteses da origem “pano” do termo Campa. Porém outras hipóteses podem ser aduzidas, como por exemplo, a origem tupi-guarani do termo. A língua tupi-guarani tornou-se um idioma de grande difusão na Amazônia e América do Sul durante o período colonial. VARESE, S. op. cit. ,p. 143.

(15) As evidências de que o termo “Campa” está historicamente carregado de conotações depreciativas são facilmente detectáveis. Até os dias atuais esta conotação é mantida tanto pelos etnólogos como pelos historiadores. Será que conseguiram neutralizar as conseqüências de uma denominação excusa ou apenas reproduzem ingenuamente as sequelas da ideologia ocidental?

(16) Betty Meggers, revê a tese do determinismo ambiental ao analizar os procedimentos da agricultura indígena nas várzeas e nas terras firmes da Amazônia. Conclui pela relevância dos métodos indígenas de cultivo, como resposta ecologicamente adequada ao meio ajmbiente (ver neste sentido MEGGERS, Betty. Amazônia: a ilusão de um paraíso. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. ). Já Roberto Carneiro, ao contrário, vê na rotatividade dos roçados outras razões de ordem cultural, não que apenas o exaurimento dos solos (CARNEIRO, Roberto. ”Slash-and-burn agriculture... Nen and Culture., University of Pennsylania Press, 1960. Pp. 230-234.)

(17) Apesar do esgotamento dos solos representar razão importante para mobilidade habitacional e, consequentemente, de roçado, há outras razões sociais e religiosas que provocam mobilidade. Entre as causas sociais: a troca de residência do homem após seu casamento é uma constante na cultura Asheninka. O nubente passa a residir próximo aos pais da esposa (residência uxorilocal). Esta mudança, entretanto, não possui caráter definitivo. A principal causa religiosa para mudança de local de habitação e cultivo é o sepultamento de um adulto da família no local.

(18) O roçado de uma família Asheninka pode contar com mais de 40 espécies de plantas.

(19) Nem todos os Asheninka tem o mesmo acesso à caça e pesca. As comunidades que residem em regiões interfluviais, nos altiplanos próximos à Cordilheira e no Gran Pajonal possuem um meio ambiente pobre em vida animal, já que estes encontram-se mais próximos aos rios. Estas comunidades, ás vezes, organizam incursões aos rios onde se provêm de caça e pesca.

(20) Entre os Asheninka, a proibição do incesto constitui um dado eminentemente cultural, nada tendo de biológico.

(21) A família que concede apenas filhos varões não está destinada ao fracasso porque a norma de uxorilocalidade é temporária e o marido também pode buscar novo enlace, com uma mulher que lhe proporcione filhas.

(22) Nas aldeias do Alto Rio Envira encontrou-se casos de poliginia na forma de sororato não vinculados ao prestígio da pessoa no grupo.

(23) Os procedimentos do parto compreendem: o assoalhado da casa é totalmente limpo e arejado, uma esteira ou roupa lavada é estendida e sobre a qual a gestante posiciona-se de cócoras segurando-se uma barra de madeira no sentido de facilitar as contrações. Durante o tempo necessário ao parto, a mulher que dá a luz, é auxiliada por uma parteira, pela mãe ou pela sogra.

(24) As mães amamentam seus filhos até os 2 anos, ou até o nascimento de um novo filho. Suplementam a alimentação infantil com alimentos mastigados e líquidos (mingaus) a partir de dois meses do nascimento. A desmama é induzida quando a criança atinge cerca de dois anos, colocando-se suco ou melado de tabaco no mamilo. Os pais ou tutores criam, educam e castigam a criança, se necessário.

(25) Na aldeia Cocassul no Alto Rio Envira observou-se uma conduta diferencial em adolescente do sexo masculino, relacionada ao vestuário. Esse aspecto necessita novas observações.

(26) A instituição da troca representa um fato cultural significativo na sociedade Asheninka. O intercâmbio de dons e bens da natureza mantidos pela tradição não tem apenas significado econômico e social, representa, ainda,comunhão entre pessoas e grupos, num sentido, evidentemente espiritual.

(27) A Banistereopsis caapi é conhecido na Amazônia Ocidental com a denominação vulgar de cipó. A bebida alucinógena produzida desta trepadeira também recebe o nome de cipó.

(28) As providências a serem tomadas pelo shiripiari neste casos são: se a doença for causada por um espírito perdido, o shiripiari envia sua própria alma à sua procura; se for por uma feitiçaria humana, separa o culpado que é obrigada a desenterrar os materiais enfeitiçados que enterrou ao redor da casa ( se o paciente morre, a bruxa é executada ou vendida aos Brancos); se forem bruxas não humanas (formigas, abelhas, ervas, bebidas), são feitos esforços conjuntos para destruí-los. Se for por um demônio passante); se for por confronto direto com um demônio de natureza imaginária, não há nada a fazer, espera-se a morte do paciente.

Fonte: MINISTÉRIO DO INTERIOR - FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO-FUNAI

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